do almoço
mas não é do conceito de almoço, é especificamente deste
na semana passada, meu pai me chamou para almoçar e decidimos ir em um restaurante argentino perto de casa. após 10 minutos de caminhada estávamos lá sentados olhando o cardápio, ele pediu um pf de frango acebolado, eu pedi milanesa con papas fritas para combinar com o ambiente, cheio de fotos do messi e do ricardo darín, quadrinhos da mafalda e cartões postais de vários cantos do país, também uma réplica da taça do mundo em homenagem ao atual título da seleção deles, os donos fazendo o possível para colocar um pedacinho da argentina em balneário camboriú-sc, uma cidade que recebe muitos turistas e imigrantes de lá, até que combina né?

tinha apenas uma coisa que destoava do ambiente criado por eles (se desconsiderarmos a audácia do meu pai de ir em um restaurante argentino para comer um prato feito), e era a trilha sonora. durante o tempo que ficamos lá estava tocando k-pop, e preciso dizer: comer uma milanesa argentina em uma cidade litorânea brasileira ouvindo blackpink se tornou imediatamente uma experiência inesquecível! como não pensar em todas as coisas que aconteceram no nosso mundo para que eu pudesse estar exatamente ali, no meio de um dia da semana ensolarado, saboreando um prato típico de outro país e batendo papo com meu pai ao som de how you like that? depois percebi também que eu estava usando uma camisa da turnê de 2017 do who, banda britânica que é uma das minhas favoritas, e meu pai com uma camiseta que eu trouxe para ele de belllingham, washington, cidade onde a minha irmã morava nos estados unidos, o que é sim irrelevante em geral mas na hora bateu muito forte, me marcou mais e mais. para coroar o momento internacional espontâneo que criamos, em busca de um docinho pós-almoço, fomos a uma sorveteria italiana, também ali pertinho, cujo dono trouxe as receitas de gelato diretamente da itália, seu país natal, e nos deliciamos com sabores clássicos e inéditos.
essa reflexão pode parecer trivial mas geralmente eu não paro para pensar nos tantos países envolvidos em qualquer instante da nossa vida contemporânea. para quem tem hobbies relacionados à arte ou ao esporte ou que simplesmente existe no ano de 2024, essa diversidade de nacionalidades é tão evidente que acaba se tornando algo corriqueiro. o raciocínio sobre as pessoas, locais e instituições são abreviados, e não pensamos mais neles como - segue exemplos aleatórios - o clube chileno huachipato, as músicas da cantautora portuguesa ana lua caiano, a trilogia de livros “crianças do gueto” do libanês elias khoury, a cidade estadunidense de lynden localizada na fronteira com o canadá, o filme “la chimera” da diretora italiana alice rohrwacher, estrelando o ator inglês josh o’connor e a brasileira carol duarte1. ressignificamos todas as coisas que conhecemos e pelas quais sentimos algo, seja o sentimento positivo ou negativo, para que elas possam se encaixar melhor na nossa personalidade. sim, em algum momento descobrimos de onde tais pessoas e instituições são, conhecemos outros lugares e o fator nacional sempre é marcante em suas definições, mas não é necessariamente o primeiro marcador que vem na cabeça quando falamos sobre eles depois que nos acostumamos com a sua ideia, pelo menos não é assim na minha.
existe uma leve contradição nesta minha concepção, considerando que me formei em relações internacionais e eu provavelmente deveria ser alguém que analisa o mundo com base em marcadores de nacionalidade o tempo inteiro. quem sabe não tê-los como norte absoluto de pensamento seja um ato poderoso vindo de alguém que tanto teve que estudar sobre esse sistema de nações e identidades nacionais — ou é clubismo meu por ser gremista e não querer focar no “internacionais” das relações. a piadinha é boba mas existe um fundo de verdade nela: para mim a parte importante sempre foi, e sempre será, a das relações, ainda mais se considerarmos que o estado-nação é uma invenção social derivada delas (ai que construtivista da minha parte, me perdoe, não vou me alongar muito)
a partir daqui, poderia me aprofundar na questão nacional, citando autores de forma simplificada, tentar fazer a ponte entre a escrita acadêmica e a informal. uma das ideias que tive para esse texto era a de trazer alguns componentes que formam as identidades e culturas dos países, e a partir daí comentar sobre a dificuldade de seus habitantes de lidar com a imigração, elemento formador de identidades híbridas e diversidade cultural, abriria-se todo um leque de possibilidades já nesse caminho. poderia também voltar o foco para a globalização, trazendo novamente uma base acadêmica (oi milton santos, tudo bem?), ou então só seguir falando de mais coisinhas cotidianas, tinha planejado outro trocadilho clubista ao dizer que todos nós estamos um pouco mais internacionais, nós que temos como comida favorita risoto ou sushi ou hambúrguer, que usamos celulares da apple ou samsung ou xiaomi, que temos uma penca de artistas favoritos estrangeiros, ai gente, tá em todas as áreas da nossa vida, né?
enfim, tive muitas propostas e anotações a respeito da sequência desse boletim porque fiquei matutando sobre uma infinitude de coisas no dia em que eu e meu pai saímos para almoçar e acidentalmente demos uma volta ao globo em um raio de 1km.

contudo, após consulta com os meus neurônios, decidimos que não vamos seguir nenhum desses roteiros e só vamos reviver alguns momentinhos do almoço. enquanto o meu pai escolhia o sorvete dele, abri o instagram e me deparei com uma postagem2 da escritora gaúcha julia dantas, sobre a mesa de que ela participou na feira literária de paraty (flip) intitulada “não existe mais lá”, com o escritor palestino atef abu salif, e enquanto eu escolhia o meu, fiquei pensando em como eventos traumáticos causados por ações humanas - no caso dos autores, guerras e enchentes -, por mais diferentes que possam ser entre si, revelam-nos aspectos primordiais das nossas sociedades e das estratégias empregadas para resistir, ajudar, lutar, sobreviver.
a questão palestina é um caso à parte e eu basicamente nem consigo falar sobre ela sem sentir uma vontade imensa de chorar, mas é impossível recordar deste mundo interligado e enredado em que vivemos sem lembrar também da insegurança total que alguns grupos enfrentam por conta da sua identidade nacional, pois não faz sentido a gente admirar algumas culturas enquanto vemos outras sendo destruídas; pois não é justo que a ordem internacional tenha se estabelecido através da dominação e da força; pois a globalização tem também o seu lado ruim, sombrio, triste e pesado de colonizações e imperialismos, e aqui retornamos aos assuntos que eu não queria mais botar no texto porém é inevitável, era exatamente nisso que eu pensava ao terminar a camada de sorvete de cheesecake, o próximo sabor já começava a aparecer e era um inédito, de cenoura com chocolate, queria muito provar.
estava absorta no sorvete e em dilemas pós-coloniais até que meu pai me perguntou porque a seleção da itália joga de azul, mesmo sendo uma cor que não está na bandeira deles, e apesar de já ter recebido essa informação em algum momento da existência, não soube responder na hora, não lembro, vou ficar devendo. depois a gente pesquisa isso, tá bom, e tu viu que o tuchel foi treinar a inglaterra? vi e pensei sobre isso a semana toda, eles nervosos com a suposta perda da suposta identidade futebolística inglesa — um reflexo das condições culturais do país, que de acordo com os xenofóbicos e racistas de lá, também está se descarcterizando devido à imigração. uma palhaçada imensa tudo, mas sinceramente se eu for começar a criticar os ingleses e o seu país, isso aqui vai virar uma monografia. melhor seguir, deixo aí outra parte do roteiro pelo caminho, bem na hora que chegou no sorvete de avelã também, a melhor parte.
analisando os tópicos que anotei na minha listinha mental para esse boletim, notei que o objetivo nunca foi discorrer extensivamente sobre assuntos a ver com a globalização e suas causas, e sim o de iniciar uma conversa leve sobre os seus efeitos, inspirada por essa nossa saída despretensiosa para fazer a refeição mais importante do dia — um dia marcado por estes pequenos encontros de identidades culturais que formam sincretismos, como o sorvete de cenoura com chocolate, ou o feijão bem alhudo preparado pela cozinheira também argentina do restaurante em que fomos. há poesia aqui, brasileiros em restaurante argentino comendo comida brasileira preparada por argentinos, você percebe também? sambar ao som de tango, alfajor de goiabada, césar aira e guimarães rosa; isso só entre vizinhos e vecinos, imagina com a participação de todo mundo? nem precisa imaginar pois assim já o é, e que bom! look at you, now look at me - how you like that?
ps: em meu bagunçado roteirinho original, tinha pensado em falar de viagens, movimentos, migrações, mas haja tempo e espaço para isso tudo!!! outra mania chata que descubro com a criação de um substack, a de querer abarcar todos os assuntos existentes no espaço de um boletim; melhor deixar para a próxima e, ademais, sobre esse assunto muita gente já falou e muito bem falado
pps: uma dessas pessoas, viajantes e migrantes, é o cantor uruguaio jorge drexler, a minha recomendação de hoje. a música que separei para colocar aqui é movimiento, que tem uma letra maravilhosa e, creio eu, em sintonia com o que tentei passar com tudo que me veio à tona neste almoço. é a primeira que ele toca nesse vídeo aqui, de quando ele participou do icônico projeto tiny desk concert da npr music, que eu recomendo assistir por inteiro se você tiver tempo!
yo no soy de aquí
pero tú tampoco
de ningún lado del todo y
de todos lados un poco
ei, quero te ouvir também! comenta aqui alguma experiência internacional - seja de se aventurar sem sair do lugar, seja das que você encontra um pouco de si no exterior -, ou me conta se gostaria de um texto mais acadêmico, opine sobre o huachipato, ou registre seu sabor de sorvete favorito
caso fique a dúvida da ressignificação no caso desses exemplos, na minha cabeça eles são, respectivamente: algoz do grêmio, ana lua, leitura inesquecível & vou chorar a qualquer momento, uma das minhas casas, filmaço, diretoraça, cara de rato, carol duarte

